Trecho de Em Algum Lugar do Paraíso, de Luis Fernando Verissimo
O tempo não tem pontos fixos, o tempo é uma sombra que dá a volta
na Terra. Ou a Terra é que dá voltas na sombra. Nossa única certeza
é que será sempre a mesma sombra — o que não é uma certeza,
é um terror.
Na nossa fome de coordenadas no tempo nos convencemos até
que dias da semana têm características. Que uma terça-feira, por
exemplo, não serve para nada. Que terça é o dia mais sem graça
que existe, sem a gravidade de uma segunda — dia de remorso e
decisões — e o peso da quarta, que centraliza a semana
(pelo menos em Brasília), ou a concentração da quinta, ou
a frivolidade da sexta. Gostaríamos que passar pelos dias fosse
como passar por meridianos e paralelos, a evidência de estarmos
indo numa direção, não entrando e saindo da mesma sombra.
Não passando por cada domingo com a nítida impressão de que
já estivemos aqui antes.
Já que não há coordenadas e pontos fixos no tempo,
contentemo-nos com metáforas fáceis. O novo milênio se
estende como um imenso pergaminho à nossa frente,
esperando para ser preenchido. Podemos escolher nosso
destino, desenhar nossos próprios meridianos e paralelos
e prováveis novos mundos. É verdade que a passagem do
tempo não se mede apenas pelo retorno dos domingos,
também se mede pela degradação orgânica, e que a cada
domingo estaremos mais perto daquela outra sombra,
a que nunca acaba, suspiro e reticências. Nenhum de nós
chegará muito longe no novo milênio.
(Minha meta é chegar à Copa do Mundo de 2014, o que vier
depois é gratificação.) Mas é bom saber que o novo milênio
está aí, quase inteiro, à nossa espera.
Nada a ver — ou tudo a ver, sei lá — mas feliz era Adão,
o primeiro homem. Não porque estava no jardim do Paraíso,
com tudo em volta para saciar sua fome e sua sede, mas
porque não sabia do tempo e da morte. Vivia num eterno
presente, num eterno domingo. O que vinha depois da
passagem da sombra da noite não era o dia seguinte,
era o mesmo dia, ou até o dia anterior, quem se importava?
Adão, sozinho no Paraíso, era um homem feliz porque era um
homem sem datas. Mas quando Deus colocou Eva ao lado de
Adão, a primeira coisa que ela perguntou, ainda úmida da
criação, só para puxar assunto, foi: “Que dia é hoje?”, e
ele sentiu que sua paz terminara. Ele era um homem no tempo.
Um homem com um ontem e um amanhã, e um futuro estendido
à sua frente como um imenso pergaminho, esperando para ser
preenchido. O tempo não foi a única novidade trazida por Eva
ao jardim do Paraíso. Foi ela que, dias depois, colheu o fruto
proibido, que os tornou, de uma só mordida, sexuais e mortais.
E foi depois de comer o fruto proibido, quando a Terra entrou
na sombra da noite e os dois se deitaram lado a lado, que Adão
sentiu seu membro, que ele pensara que fosse só para fazer xixi,
se mexer. E avisou a Eva:
— É melhor chegar para trás porque eu não sei até onde este
negócio cresce.
Depois de ganhar uma mulher e descobrir o tempo e sua
mortalidade, Adão descobriu seu próprio corpo. Que semana!
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