SAINT-CLAIR MELLO
Um dia, você acorda com dores pelo corpo.
Hoje dói o cotovelo esquerdo, ao rotacionar o braço.
Outro dia, se esquece de pingar o colírio que controla
a pressão ocular. Outro dia, é a vez de deixar de tomar
o remédio para manter o colesterol baixo. Ou aquele
da glicose. Um dia, deixa de pagar a conta, porque
ficou o tempo inteiro à mercê do nada e
simplesmente se esqueceu. Outro dia, pega
seu neto no colo, ajuda-o a comer, dá-lhe banho,
sai com ele a passear no calçadão da praia.
Um dia, amanhece torto, porque o travesseiro
antigo está deformado e lhe produziu um torcicolo,
ou é a dor ciática que relampeia da popa à batata
da perna. Uma tarde, você vai ao cinema, na hora
em que a maioria da população está no trampo.
E, ainda por cima, paga meia entrada. E fica no ar
condicionado gelado, enquanto lá fora um bando
sua em bicas, à cata dos afazeres. Na outra tarde,
embora não pague a passagem do ônibus, tem
dificuldades de subir os degraus – os joelhos
já assolados por artroses. Noutra tem de ouvir
reclamação inconveniente do jovem na fila,
só porque exerce seu direito à preferência.
Mas tem todo o direito de olhar a mesma menina
bonita que passa de roupa de praia diante do bar
onde ambos – você e o jovem – bebem cerveja e
falam de futebol descompromissadamente. Um dia,
você acorda nostálgico e lembra da infância perdida
pelos 50, do carro de boi de sabugo de milho, da
siliprina com os outros moleques, dos banhos de
chuva nos verões perdidos no tempo. Outro dia,
enfrenta a fila para tirar o sangue e conferir os
dados do organismo que já não funciona mais
com a desenvoltura de menino. Uma noite perde
o sono por nada, a troco de nada, despreocupado
de tudo, os filhos e netos bem encaminhados na
vida, e toma um sonífero, porque os carneirinhos
não pulam mais sobre a cerca da madrugada.
Numa manhã, acorda serelepe como há muito não
fazia, como se o tempo ainda não tivesse sido
debulhado em sua folhinha. Numa outra, pega o
carro com a mulher e sai a passear numa terça-feira
qualquer, atrás dos caminhos que levam a um lugar
qualquer, não importa onde seja, basta apenas chegar.
Noutra, tem de tomar um digestivo, porque aquele
leitão à pururuca que sempre fizera muito bem à
saúde desta vez não caiu bem. Noutra, vai encontrar
os amigos para um, dois cafezinhos na galeria refrigerada, jogando conversa fora ou tentando consertar o mundo
antes do final dos tempos. Um dia, olha com admiração a juventude que passa feliz à sua frente e sente que
também já foi assim. Noutro, repara a falta de
compromisso dos jovens com os destinos do país e
imagina que tudo estará perdido daqui mais cem
anos, quando nem mais será lembrança. Um dia,
prepara aquela feijoada que só você sabe fazer e
reparte com os amigos o paladar exclusivo da amizade,
e bebe pinga, tira gosto com linguiça, torresmo e
chouriço, e não sente nenhum incômodo no dia seguinte.
Um dia, percebe que aquilo que hoje se estuda em
história era notícia para você, que estava mesmo no
meio dos acontecimentos. Um dia, enfim, fecha os
olhos para dormir e não acorda em lugar nenhum,
e seu nome passa a ser apenas uma referência
efêmera entre os que permanecerem acordados
por mais outros tantos dias e tardes e noites, e
assim por diante.
Hoje dói o cotovelo esquerdo, ao rotacionar o braço.
Outro dia, se esquece de pingar o colírio que controla
a pressão ocular. Outro dia, é a vez de deixar de tomar
o remédio para manter o colesterol baixo. Ou aquele
da glicose. Um dia, deixa de pagar a conta, porque
ficou o tempo inteiro à mercê do nada e
simplesmente se esqueceu. Outro dia, pega
seu neto no colo, ajuda-o a comer, dá-lhe banho,
sai com ele a passear no calçadão da praia.
Um dia, amanhece torto, porque o travesseiro
antigo está deformado e lhe produziu um torcicolo,
ou é a dor ciática que relampeia da popa à batata
da perna. Uma tarde, você vai ao cinema, na hora
em que a maioria da população está no trampo.
E, ainda por cima, paga meia entrada. E fica no ar
condicionado gelado, enquanto lá fora um bando
sua em bicas, à cata dos afazeres. Na outra tarde,
embora não pague a passagem do ônibus, tem
dificuldades de subir os degraus – os joelhos
já assolados por artroses. Noutra tem de ouvir
reclamação inconveniente do jovem na fila,
só porque exerce seu direito à preferência.
Mas tem todo o direito de olhar a mesma menina
bonita que passa de roupa de praia diante do bar
onde ambos – você e o jovem – bebem cerveja e
falam de futebol descompromissadamente. Um dia,
você acorda nostálgico e lembra da infância perdida
pelos 50, do carro de boi de sabugo de milho, da
siliprina com os outros moleques, dos banhos de
chuva nos verões perdidos no tempo. Outro dia,
enfrenta a fila para tirar o sangue e conferir os
dados do organismo que já não funciona mais
com a desenvoltura de menino. Uma noite perde
o sono por nada, a troco de nada, despreocupado
de tudo, os filhos e netos bem encaminhados na
vida, e toma um sonífero, porque os carneirinhos
não pulam mais sobre a cerca da madrugada.
Numa manhã, acorda serelepe como há muito não
fazia, como se o tempo ainda não tivesse sido
debulhado em sua folhinha. Numa outra, pega o
carro com a mulher e sai a passear numa terça-feira
qualquer, atrás dos caminhos que levam a um lugar
qualquer, não importa onde seja, basta apenas chegar.
Noutra, tem de tomar um digestivo, porque aquele
leitão à pururuca que sempre fizera muito bem à
saúde desta vez não caiu bem. Noutra, vai encontrar
os amigos para um, dois cafezinhos na galeria refrigerada, jogando conversa fora ou tentando consertar o mundo
antes do final dos tempos. Um dia, olha com admiração a juventude que passa feliz à sua frente e sente que
também já foi assim. Noutro, repara a falta de
compromisso dos jovens com os destinos do país e
imagina que tudo estará perdido daqui mais cem
anos, quando nem mais será lembrança. Um dia,
prepara aquela feijoada que só você sabe fazer e
reparte com os amigos o paladar exclusivo da amizade,
e bebe pinga, tira gosto com linguiça, torresmo e
chouriço, e não sente nenhum incômodo no dia seguinte.
Um dia, percebe que aquilo que hoje se estuda em
história era notícia para você, que estava mesmo no
meio dos acontecimentos. Um dia, enfim, fecha os
olhos para dormir e não acorda em lugar nenhum,
e seu nome passa a ser apenas uma referência
efêmera entre os que permanecerem acordados
por mais outros tantos dias e tardes e noites, e
assim por diante.
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